Eu fui uma criança e um adolescente que adorava ler. Por algum tempo, inclusive, achei que seguiria alguma carreira relacionada a isso (escritor? Editor?). Até cheguei a cultivar a escrita como um hobbie - tive alguns blogs, mantive alguns diários aqui e ali por algum tempo, e lembro de ter algo como um “livro” escrito em arquivos .doc quando tinha uns 10 ou 12 anos de idade (inventei super-heróis com poderes de reciclagem e escrevia as aventuras deles. Aliás, emprestei essa ideia de um gibi da Turma da Mônica. Será que esse tempo todo eu estava escrevendo fanfics? Fica o questionamento).
Em algum momento da minha história, no entanto, percebi ou decidi que gostava mesmo de ler e absorver as histórias; de ouvir e aprender com aquelas pessoas imaginárias. Adorava mergulhar em cada um desses mundos novos, conhecer personagens que pareciam tanto com pessoas reais, que pareciam tanto comigo ou que eram completamente diferentes. Ler seus pensamentos, compreender seus dilemas, dramas e dificuldades e vê-los navegar por tudo isso era o que eu realmente gostava. Tive minha fase de adorar ficção científica (e ainda acho um gênero incrível), mas lá pela adolescência, comecei a gostar de um tipo meio específico de livro, que não sei descrever bem, mas que é algo como uma ficção cotidiana, com alguns toques de… bizarro? Inusitado? Doses de absurdo dentro do banal e do cotidiano.
Os maiores representantes desse “gênero” pra mim são os livros do Saramago: “O Homem Duplicado” conta a história de um homem comum, um tanto entediado até, que um dia descobre completamente por acaso a existência de um outro homem com a sua exata aparência. “A Caverna” conta a história de um pai e uma filha, artesãos de barro, que precisam lidar com a gravidade de uma cidade absurda que vai crescendo descontroladamente, engolindo tudo ao seu redor, inclusive o ofício que a família vinha exercendo há gerações. “Todos os Nomes” fala sobre um burocrata idoso que um dia se apaixona perdidamente por uma moça que conhece apenas pelos documentos que maneja em seu dia a dia.
“O tempero de sempre nos pratos do costume”
Compreender essas coisas sobre a minha própria história me ajudam a entender porquê (e como) me tornei psicólogo clínico. Atender na clínica é, para mim, conhecer a história de cada um desses pacientes, cada uma dessas pessoas, absorvê-la, compreendê-la e dar algo em troca, algo que lhes ajude a escrever o próximo parágrafo. De certa forma, no fim das contas, estou colaborando com esses papéis: leitor, revisor, coautor.
O espaço da terapia é um dos poucos (talvez até o único) momento em que a gente pára de viver a nossa história em primeira pessoa, uma situação depois da outra e antes da próxima, na pressa e na correria, e, por uma horinha, conta a nossa história, em voz alta, pro melhor dos ouvintes - aquele que está pronto para acolher, compreender e apontar novas possibilidades, de forma compassiva, carinhosa e presente.
De peito aberto,
Guilherme.
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